Aborto, uma questão de saúde pública

No último dia 19 (sábado), uma mulher saiu de casa para um procedimento médico em uma clínica em Pendotiba, região oceânica de Niterói. Apesar de ser contra, seu marido não impediu que ela fizesse o aborto. No domingo à noite, a família recebeu uma ligação da equipe do Hospital Azevedo Lima, também em Niterói, informando que a dona de casa estava internada. Quando chegaram, os familiares foram informados que ela não tinha resistido a um sangramento decorrente do aborto e falecera. No dia 26 de agosto, a auxiliar administrativa Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, foi fazer um aborto em uma clínica clandestina em Campo Grande, na zona oeste do Rio, e desapareceu. Seu corpo, encontrado carbonizado dentro de um carro em Sepetiba, foi enterrado domingo (28). Como sua arcada dentária e as digitais foram destruídas pelos assassinos, a identificação do corpo só foi possível através de exame de DNA.

Depois da morte dessas duas mulheres que recorreram ao aborto clandestino, o presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), Sidnei Ferreira, propôs que o procedimento deixe de ser crime. Ele explicou que, com acesso ao sistema de saúde, a mulher que decidir interromper a gestação poderá fazê-lo de forma segura, evitando sequelas e complicações que podem levar à morte em falsas clínicas. “O aborto é um problema de saúde pública que os três Poderes precisam resolver. A sociedade tem de discutir esse assunto, para que seja liberado o mais rápido possível. Dentro das regras, mas o mais rápido que puderem. Se continuar sendo um crime, mulheres continuarão morrendo”, afirmou Ferreira. Esclareceu que está é uma opinião pessoal e que podem pensar diferente os 42 conselheiros do Cremerj e os 58 mil médicos que trabalham no Rio.

O presidente do Cremerj argumentou que a ampliação do planejamento familiar é importante para evitar o aborto. Esclareceu, no entanto, que, para a mulher, a decisão pelo procedimento é difícil psicológica e fisicamente. “É muito duro para a mulher. É sofrido. O aborto não é método contraceptivo”, frisou.

No Brasil, estimativas apontam que em torno de 1 milhão de mulheres fazem abortos clandestinos todos os anos, e 200 mil morrem em consequência da operação. De acordo com o cientista político e assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil, Maurício Santoro, a criminalização da prática também é um problema muito grave de discriminação socioeconômica. “A gente sabe que, nos casos em que as mulheres são presas, os abortos foram feitos em casa. Só depois ela procura o hospital e acaba respondendo a processo. Então, aquelas que têm condições pagar os serviços de uma clínica clandestina, de melhor qualidade, não são criminalizadas, porque não sofrem as consequências de um aborto mal feito. Essa é uma das perversidades do aborto ilegal”, segundo Santoro.

Ele cita levantamento feito no estado do Rio de Janeiro, de 2007 a 2011, no qual foram encontradas 334 mulheres que sofreram processos criminais por terem abortado. Muitas delas moradoras no interior, na Baixada Fluminense e no subúrbio carioca. Pelo número de vítimas que provoca, além do sacrifício do feto, o aborto precisa ser tratado objetivamente como um caso de saúde pública, deixando a questão de fazer, ou não, a interrupção da gravidez, por conta da gestante.

As razões morais ou filosóficas não justificam o silêncio da classe política, muito menos a hipocrisia de alguns líderes políticos, que se negam a debater abertamente o assunto, embora não tenham o menor constrangimento de defender a descriminalização da maconha e a liberação do comércio de armas no País.