ARTIGO:

JURIDICIDADE ADMINISTRATIVA CONGLOBANTE, NO LIMIAR DE UMA NOVA LEGISLATURA MUNICIPAL

Jesse Torres Thais Marçal

JESSÉ TORRES PEREIRA JUNIOR

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Conferencista emérito em Direito Administrativo e membro do Fórum de Transparência e Probidade Administrativa, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Professor convidado da Escola de Direito Rio, da Fundação Getúlio Vargas, e da Escola Superior de Advocacia OAB/RJ.

 

THAÍS MARÇAL

Advogada e árbitra listada no CBMA, CAMES e CAMESC. Mestre em Direito pela UERJ. Coordenadora acadêmica da ESA OAB/RJ. Membro do Fórum de Probidade Administrativa e Transparência Pública da EMERJ. Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN). 

     O jurista argentino Eugênio Raul Zaffaroni propôs, para o direito penal, a ideia da tipicidade conglobante, que, em apertada síntese, significa dizer que o estado não pode considerar como típica conduta por ele tolerada ou fomentada.Transpassada para o direito administrativo, a proposta impulsiona a releitura das formas de intervenção do estado na sociedade, mediante o exercício de poderes harmônicos e independentes entre si, com suas respectivas funções típicas e atípicas.

     Não basta, porém, que os poderes clássicos de executar, legislar e julgar sejam exercidos. Igualmente insuficiente, embora relevante,seria submeter a tutela da administração pública apenas ao controle de princípios, normas e regras positivadas. A gestão do estado deve estar jungida ao fiel cumprimento dos instrumentos de manifestação volitiva, de modo a permitir que o seu efeito irradiante dê corpo a uma cultura de concertação.

     Em outras palavras: juridicidade administrativa conglobante significa dizer que a conduta administrativa será legítima quando praticada em respeito a princípios, regras e atos de vontade legitimamente expressos. A lógica da discricionariedade deve estar em consonância com o respeito às manifestações de vontade legitimamente exercidas e o respeito dos efeitos delas decorrentes.

     No limiar, em 2021, de nova legislatura municipal, é preciso ter essa ideia como tônica de governança: as escolhas legitimamente eleitas pela maioria não podem sucumbir ou serem acolhidas sem o prévio, amplo e efetivo exercício do contraditório.

     Intervenções públicas estruturais são o resultado de anos de planejamento e de outros anos de execução. Mudanças abruptas, imotivadas e sem respaldo da análise consequencialista, positivada pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), podem dar ensejo a desastrosas desestruturações.

     De bom alvitreo acompanhamento,pelos Tribunais de Contas,da governação de obras[1]. A descontinuidade de projetos de longo prazo distorce a lógica PDCA de governança (planejamento, desenvolvimento, controle e avaliação), que deve orientar a gestão pública. O ônus argumentativo que cumpre ao gestor exercer, para motivar a paralisação de uma intervenção pública, deve ser majorado, levando em conta, como mínimo argumentativo a ser obedecido: (i) existência de funcionalidade, ainda que parcial, das estruturas, em caso de obras já construídas; (ii) inexistência de prejuízo para a prestação do serviço público, que não possa ser suportado por medida alternativa a tempo e modo plausíveis; (iii) prévio e efetivo contraditório da parte eventualmente contratada, além da sociedade em geral, de modo a franquear a ponderação das consequências que poderão advir.

     Ultrapassados tais requisitos, não basta a opção pela paralisação do serviço/obra, mantendo o custo e a trava de desenvolvimento. É preciso auditar para perquirir eventuais prejuízos, com o respeito inerente ao direito administrativo sancionador.

     É comum, na experiência gerencial brasileira, a síntese de que “passamos pouco tempo planejando e muito tempo executando”. Há que se inverter a lógica. Um planejamento adequado, colocado em prol de uma discussão pública com amplo debate com a sociedade, tem muito mais chances de alcançar os fins de interesse público.O controle social deve ser primordialmente prévio, assim como todos os demais controles internos e externos da Administração. E não apenas para o Poder Executivo. Vale também para o Legislativo. Debate franco de ideias mitiga os efeitos deletérios da assimetria informacional.

     A experiência legislativa brasileira não nos anima a concluir que leis, da maneira como são elaboradas, transformam a realidade.E amiúde a revisão de leis se faz de maneira volúvel e não reflexiva, sem o necessário debate sobre as razões de ordem pública. Aqui, não se está a falar de cumprimento burocrático de formalidades. Muito menos da realização de plebiscitos ou referendos sem o necessário fomento ao debate público. Está a se desenhar a concepção essencial de democracia, enquanto processo coletivo e contínuo de construção.

     Apenas a prática comezinha, que perpassa desde pequenos gestos até as chamadas escolhas trágicas – aquelas que devem ser feitas em face de problemas igualmente desafiadores -, balizam a qualidade administrativa. E apenas através de práticas educacionais transformadoras do cotidiano será possível avançar na busca por uma sociedade emancipada.A realidade faz exsurgir a necessidade de um novo processo legislativo, de uma nova juridicidade administrativa conglobante, para, aí, sim, impulsionaro primeiro passo em busca da mudança cultural tão almejada pela sociedade brasileira.

     A complexa sociedade contemporânea vem percebendo a insuficiência dos objetivos[2] que embasaram a teoria da tripartição dos poderes, pois: (a) hospeda uma vasta variedade de visões críticas sobre as funções e os papéis do estado; (b) não hierarquiza valores, nem fixa indicadores, com o fim de estabelecer prioridades em caso de conflito entre os objetivos e os poderes.

     A tripartição de poderes padece de ambiguidades quando aplicada aos casos concretos levados aos tribunais ou às situações que lei nova pretenda vir a tutelar: tanto pode ser invocada para negar quanto para justificar a intervenção judicial ou legislativa, dependendo do compromisso que se tenha com a natureza das respectivas funções e os objetivos da separação de poderes que se tenham como prioritários.

     Os tribunais e as casas legislativas tendem a fazer uso do modelo teórico como um valor ou fim em si mesmo, ao mesmo tempo em que dá suporte a concepções contrastantes do estado e suas estruturas, gerando contradições quando a teoria é posta em operação, conforme se tenha tal ou qual compromisso ideológico.

     O estado do século XXI tende a ser “dirigista, discricionário e disperso”. Uma multiplicidade de diferentes organizações e atores participa dos assuntos governamentais - “business ofgovernment” -, dentro e fora da estrutura administrativa estatal, mas dela recebendo repasses de recursos de toda ordem, inclusive financeiros. E vice-versa, ou seja, organizações privadas assumem encargos de gestão de atividades ditas de interesse público.

     Os conflitos continuam sendo, basicamente, os que opõem o interesse coletivo ao interesse individual. Para precatá-los ou resolvê-los, a tripartição dos poderes de Montesquieu foi produto de uma época em que o poder era exercido de forma unilateral: o poder do soberano manifestado por meio de normas gerais, veiculadas por processo político “estatutário”, como se fosse, para fazer-se concessão ao contratualismo rousseauniano, um contrato de adesão irrecusável: o soberano estabelecia as cláusulas e o povo a elas aderia incondicionalmente.

     O exercício do poder, agora entendido como exercício de “governabilidade”, é complexo e intrincado. Não se amolda ao figurino dos séculos XVII a XIX e boa parte do século XX. Do debate que por toda parte hoje se desenvolve, sobre a teoria da separação dos poderes, vêm resultando premissas e propostas ajustadas aos novos tempos, destacando-se:

     . o estado é uma construção colaborativa, cuja utilidade é a de permitir avanços mais efetivos e universalistas dos interesses individuais e coletivos, em regime de mútuo respeito e consideração;

     . os cidadãos são sujeitos de direitos e obrigações políticas em face do estado porque este deve prover um conjunto de bens que aqueles não seriam capazes de obter individualmente;

     . a separação de poderes deve conduzir à organização de instituições estatais que atuem para assegurar que as decisões governamentais levem em conta tanto os interesses coletivos quanto os individuais; não se trata de propor que a “separação de poderes” exprima uma soberania bipolar, dualista, quase esquizofrênica, porém de considerar que o interesse público encerra noção que, embora monolítica, deve admitir a coexistência real de perspectivas divergentes acerca de qualquer ação estatal, por isto que as instituições devem estar predispostas a sopesar essas divergências e a admitir que nenhum dos poderes tem o monopólio do que é, ou não, de interesse público;

     . o novo modelo da “separação de poderes” busca extrair a unidade da divergência, visando obter resultados que a todos beneficiem, a partir de uma conjunção racional das finalidades de cada qual;

     . o interesse público constitucionalizado nas políticas públicas exige administração responsiva às necessidades e aspirações coletivas e individuais, cujos efeitos decorrerão de uma cooperação institucional coordenada, apta a inibir ações unilaterais insuscetíveis de verificação e controle, verificação e controle que correspondem ao ideário republicano e democrático;

     . o novo perfil da “separação de poderes” reclama um processo de coordenação participativa que os aproxime entre si, de forma transparente, organizada e permanente, afastadas rivalidades e disputas personalistas por lideranças, carismáticas ou não, e vedados expedientes - sigilosos ou ostensivos - de cooptação (sempre canais de desvios de recursos públicos para atender a projetos pessoais);

     . no estado democrático, administrador do interesse público constitucionalizado, o exercício do poder político é um processo permanente, interminável, de colaboração coordenada ente as instituições, cujo núcleo deve ser a governabilidade comprometida com resultados que a sociedade e os cidadãos reconheçam como benéficos para todos; vale dizer que maioria e minoria têm direitos iguais na audiência das instituições estatais e que estas, todas, têm iguais responsabilidades, no âmbito de suas respectivas competências constitucionais, na identificação e na consecução do que se deva considerar como de interesse público.

     Qualquer semelhança com as medidas e contramedidas protagonizadas por Executivo, Legislativo e Judiciário, em aparente disputa pela primazia do poder, ultimamente veiculadas pelo noticiário brasileiro, não é mera coincidência e desafia, em escala planetária, estados e sociedades nas escolhas de seus destinos. Que as façam com sabedoria e prudência, esperam os cidadãos na dupla qualidade de eleitores e jurisdicionados.

     Que se fomente o “neoadministrativismo”[3], consistente na necessidade de  relação intra e interestatal pautada na consensualidade e no diálogo, com vistas a obter o resultado mais eficiente para a concretização de direitos fundamentais, de modo sustentável, pautado na prática educativa, preventiva e inclusiva.

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[1] Confira-se o interessante estudo constante em: https://portal.tcu.gov.br/fiscobras2020/acompanhamento_da_obras_publicas_paralizadas_em_todo_o_pais.htm

[2] Historicamente, podem ser citados os seguintes objetivos: (i) evitar a tirania; (ii) estabelecer equilíbrio; (iii) assegurar que toda lei sirva ao interesse público; (iv) estimular a eficiência governamental; (v) prevenir a prevalência da parcialidade; (vi) elevar o teor de objetividade e generalidade das lei; e (vii) impor a prestação de contas.ApudEoinCarolan, The New SeparationofPowers – A Theory for theModernState. Oxford University Press, 2009.

[3] A respeito do tema, confira-se: PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; MARÇAL, Thaís. Neoadministrativismo: limites e possibilidades. In: OLIVEIRA, Gilberto (Org.) A Boa Gestão Pública e o Novo Direito Administrativo: dos conflitos às melhores soluções práticas, no prelo.

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